sexta-feira, setembro 28, 2007

Casa da Paixão

A sarça incendeia-se

dois corpos
moldam a areia

Sonho-te numa praça deserta
como desertos são
os momentos que me cercam
sonho-te suspensa nas nuvens
como suspenso estou no movimento
que me envolve
sonho-te ainda ancorada
num cais de pedras cinzentas
e macias
como os presságios
que pressagio
sonho-te e no sonho
me revejo para depois acordar
e partir sem remorsos
nem rodeios

imagino-te
inquieta
a fuga sempre pronta
a voz denuncia
a gargalhada branca

Sei-te submersa
árvore única
escondida
no meu jardim
de papel

Vejo-te hoje deitada
o sol delirante
entorna maresia
a teus pés flores outonais
ornam o momento
que agora germinou
no meu errante
pensamento

És assim adormecida
entre nevoeiros
aquário transparente invisível
onde navego
e não sei ver
mergulho-te os olhos selvagens
que não podem ler

vem
são horas de correr viagem
antes de te mentir verdades
que a estrada conduz à miragem
é lá que devemos morrer

De pé ou sentada
o rosto envolto pelas mãos
o gesto o sinal o sentido
revejo-te
ainda agora
a acordar

Encontro
enlaço
abraço

sabemos ambos
a face ocultada lua
Se te escrevesse uma carta
não a lerias
as minhas cartas nada dizem
ninguém as leu
se te cantar um poema
não o entenderás
também ninguém os entendeu
se te disser palavras
palavras escorregadias
não acreditarás
jamais alguém acreditou
mas se te pegar na cabeça e a morder
se te abraçar com os olhos
se te apertar numa vertigem
aqui começará a alquimia

daremos à luz
um amor novo
que se não sabia

Hoje é o dia
de eu te descer pelos dedos
de entrar na tua mão
agora é hora
de eu te beber as palavras de te segurar os gestos
já é o momento
de te abraçar os pensamentos
e da tua alma desvendar
os destinos inconcretos

Descalça caminhaste
sobre a ria
mãos abertas
navegando
águas de prata
tu e a ria
à procura do mar

A manhã acordara
já não era cedo
fomos ao lago
atravessamo-lo na primeira
maré
havia uma ilha
onde o silêncio crescia
alimento das águas
que corriam
em rodapé

mudos no movimento
adivinhando o futuro
morámos o momentos
aboreando sem remorsos
aquele envelhecer prematuro

amanhã seria longe
agora era a certeza
preferimos brincar
com a amargura
confundi-la
entre a toalha e a mesa

caminhámos coisas
que não conhecíamos
líquidos passos errando
nessa manhã podre e fria
o teu olhar como sol poente
no meu
encontrando o fim do dia

Prendo-te o olhar

caminho-te os lábios

num sorriso virgem
dobro-te o queixo

navego-te os cabelos
desaguo na tua garganta

fico-me perdido

salgada a melodia
que me encanta

O rio corre
eu caminho numa margem
tu caminhas na outra

olho para o rio
e para a margem

vejo o teu reflexo
na água turva

a tua sombra
na rocha recortada
às vezes não vejo nada
no entanto caminho
e sei que também tu
vais
entregue à caminhada

Sou-te
eterna desconhecida
uma flor ensanguentada
uma fagulha húmida
cicatrizante

sei-te
procurando onde
não sabes
ave única
no céu desenhada

sopro-te
rara palavra
que não conheces
brandida ácea lâmina
afiada
adormeço-te
no doce gume
de uma espada

Árvore marítima
do líquido sopro
desabrochada
vertical sobre a onda
flutuando nas águas
alheia ao mudar
dos ventos

Entrego-te ao vento
guardador de rebanhos tresmalhados
entrego-te à trovoada
senhora dos céus encrespados
entrego-te ao sol e à lua
domésticos deuses
entrego-te às palavras que não dissemos
(só essas são verdadeiras)
e a todas que não diremos
entrego-te porque
a ninguém pertences
entrego-te porque nem
tu podes agarrar-te
entrego-te porque
a máscara te confunde
e antes que a solidão te inunde
entrego-te para não ter
que te matar

Somos
dois barcos
sem horizonte

Luís Tobias in "As Quatro Casas"