quinta-feira, junho 29, 2006

Depois

depois
com a chávena de café na mão mexendo o açúcar
arrastando os chinelos de borracha virás até aqui
onde encontrarás esta carta

serão talvez nove horas
a rádio cospe anúncios de sabonetes e detergentes
o irritante pi do sinal horário
suspiras ao pegar no envelope
e apenas o teu suspiro te parecerá deslocado
de resto há muito que os teus dias são o decalque uns dos outros

escrevo-te enquanto não amanhece
a morte desperta em mim uma planta carnívora
o mundo parece despedaçar-se pelos desertos do meu delírio
pântano de lodo entre a pele da noite e a manhã
espaço de penumbras e de incertezas
onde podemos perder tudo e nada desejarmos ainda
por isso aproveito o pouco tempo que me sobeja da noite
este vácuo lento este visco dos espelhos
espessa escuridão agarrada à memória debaixo da pele
começa a asfixia o perigo de ter amado
no mais profundo segredo das noites devorávamo-nos
e um barco tremeluzia pelas cortina do quarto
como um presságio
nos objectos e a roupa atirada para cima das cadeiras
revelavam-me a pouco e pouco a desolação em que tenho vivido

Al Berto

segunda-feira, junho 26, 2006

Carta da Árvore Triste

quando te levantares e abrires as janelas
a luz espalhar-se-á por toda a casa
cobrirá suavemente os objectos e o mobiliário
devolvendo-lhes os seus pesos formas e volumes
acordá-los-á para as quotidianas utilizações
e as petúnias em plástico na jarra da sala agitar-se-ão
à tua passagem em direcção à cozinha
a cidade entrará repentinamente pela casa adentro
um grito nas traseiras sacode-te para o interior baço da manhã
buzinas sirenes
o telefone do vizinho atravessando as paredes
gritos de crianças derrapagens estridentes
outro telefone
uma porta que se fecha com estrondo
passas o olhar pelo jornal de ontem em cima da mesa
lês:

um papagaio valioso com 32 anos
capaz de falar em 3 idiomas
foi morto por um jovem drácula de nome punk
Carlinhos Monóxido
o papagaio foi encontrado morto e de olhos saídos das órbitas
suspeita-se que...



o telefone parou de tocar
atiras o jornal para o caixote do lixo
reparas então que tudo o que permanecera na penumbra do sono
surge subitamente nítido e coberto de luz
como se tivesses encontrado uma fotografia esquecida
no fundo dalguma gaveta forrada a papel-manteiga
o dia instalar-se-á igual aos outros milhares de dias
com a banal crueldade dos acontecimentos
ouves rádio enquanto o café aquece
deixas queimar um pouco as torradas
passas os dedos pelos cabelos atados numa fitinha de chita
ajeitas o roupão para cobrires o peito desarrumado

AL BERTO

sexta-feira, junho 23, 2006

Lápide

a contínua escuridão torna-se claridade
iridescência lume
que incendeia o coração daquele cujo ofício
é escrever e olhar o mundo a partir da treva
humildemente
foi este o trabalho que te predestinaram
viver e morrer
nesse simulacro de inferno

meu deus!
tinha de escolher a melhor maneira de arder
até que de mim nada restasse senão um osso
e meia dúzia de sílabas sujas
calcinadas

Al Berto

terça-feira, junho 20, 2006

Nocturno de Chopin

Gosto de juntar palavras
no teu corpo
ouvir da tua voz
o sangue em fogo

Sentir a tua seiva a borbulhar
uma prece sedenta
em turbilhão
um jacto de magia

Beber dum trago voraz
as tuas carnes
depois cozer poemas
por parir

Misturar as tuas juras
nos meus dedos
deixar sílabas loucas
nas encostas

Depois acordar na alvorada
ver o teu torso nu adormecido
e saber que não foi sexo nem desejo
apenas um nocturno de Chopin


Luis Graça

quarta-feira, junho 14, 2006

Horas demoradas

procurei nas horas demoradas, o teu canto de corais.
a tua auréola azul, céu que havia no fundo do mar.
procurei nos teus abraços, o abraço mais largo das estrelas
e na noite as ondas que enrolavam nas mãos.

procurei os passos que deixavas por cima das águas,
os sinais que desenhavas no céu com as mãos pequeninas.
procurei o leite da tua pele, que derretia na minha boca,
os sabores dos frutos, os silêncios das chuvas.

procurei o teu nome na areia, escrito com as mãos nuas.
os laços que amarras-te mil planetas no meu colo.
procurei por dentro das marés o sal dos teus beijos,
as viagens que o eco da tua voz levava e trazia no vento.

procurei nos pássaros o teu voo imperial,
as serpentinas de cores que arrastavas no céu pelas manhãs.
procurei nos búzios o som do palpitar do teu peito,
que abria em murmúrios de ternura, os espasmos da terra.

diz-me se te vou encontrar outra vez,
para de novo aprender a voar.

Pedro Lucas, mas...bem que gostava ter sido eu :))

segunda-feira, junho 12, 2006

No alpendre...

No alpendre, espero por ti.
Os arbustos cresceram. As folhas caíram
O poço secou. As pessoas partiram.

É mais difícil quando vem o frio
A brisa chora nos meus olhos.
E nos meus olhos era onde sonhavas
Teus sonhos dentro de mim.

Envelheci com as árvores.
Com o cair das folhas no Outono.
Agora já não dão frutos.

Oiço apenas o barulho do vento
Que atravessa os ramos,
Que atravessa dentro de mim, vazio.

A noite não acaba. O dia não acaba.
Nada se não silêncio incessante.
Espero por ti, no alpendre.
Sei que não voltas. Mas ainda te quero abraçar

A brisa, chora nos meus olhos.
Porque foi nos meus olhos
Com as tuas mãos pequeninas,
Que aprendeste a sonhar

Pedro Lucas

sexta-feira, junho 09, 2006

TODOS TEMOS ALCÁCER-QUIBIR NOS CORAÇÕES


Tive uma namorada
boa na cama e na alma
pequeno canyon sempre aberto aos índios
com caldo verde e chouriço até às tantas

Tinha olhos de lago a beijar a lua
e dois seios meiguinhos com sabor a fruta
um par de atalhos em seda como flamingos
amigos do peito com bom coração

Fugiu-me numa manhã de nevoeiro
apanhei-a nas dunas, bem ao longe
chupando com lábios de névoa
o sexo nebuloso de D. Sebastião

Luis Graça

quarta-feira, junho 07, 2006

Uma Obra-Prima da Poesia Brasileira

Pássaro de rico é canário,
pássaro de pobre urubu,
rabo de rico é ânus,
e rabo de pobre é cu.

Moça rica é bacana,
moça pobre é xereta,
periquita de rica é vagina,
a da pobre é buceta.

Rico correndo é atleta,
pobre correndo é ladrão,
ovo do rico é testículo,
o do pobre é colhão.

O rico usa bengala,
o pobre usa muleta,
o rico se masturba,
o pobre bate punheta.



Composta por uma aluna do Colégio Bom Conselho (Fortaleza-CE)

segunda-feira, junho 05, 2006

Vocês têm.......

A senhora idosa, perto dos 90 anos, mas toda despachada, numa farmácia:
- Vocês têm analgésicos?
- Temos sim senhora.
- Vocês têm remédio contra reumatismo?
- Temos sim senhora.
- Vocês têm camisa de vénus lubrificada?
- Temos sim senhora.
- Vocês têm Viagra?
- Vocês têm pomada anti-rugas?
- Vocês têm pomada para hemorroidas?
- Vocês têm bicarbonato?
- Vocês têm antidepressivos?
- Vocês têm soníferos?
- Vocês têm remédio para a memória?
- Vocês têm fraldas para adultos?
- Temos sim senhooooora.
- Vocês têm...
- Minha senhora, por favor! Aqui é uma farmácia, nós temos isso tudo. Qual é o seu problema, afinal?
- É que vou casar no fim do mês e o meu noivo tem 85 anos. Gostaríamos de saber se podemos deixar a nossa lista de casamento aqui...!

sexta-feira, junho 02, 2006

Nalgum lugar

Nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto


o teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu me tenha fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando subtilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos lindamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder da tua imensa fragilidade: cuja textura
me compele com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva,tem mãos tão pequenas

e. e. cummings