quinta-feira, junho 29, 2006

Depois

depois
com a chávena de café na mão mexendo o açúcar
arrastando os chinelos de borracha virás até aqui
onde encontrarás esta carta

serão talvez nove horas
a rádio cospe anúncios de sabonetes e detergentes
o irritante pi do sinal horário
suspiras ao pegar no envelope
e apenas o teu suspiro te parecerá deslocado
de resto há muito que os teus dias são o decalque uns dos outros

escrevo-te enquanto não amanhece
a morte desperta em mim uma planta carnívora
o mundo parece despedaçar-se pelos desertos do meu delírio
pântano de lodo entre a pele da noite e a manhã
espaço de penumbras e de incertezas
onde podemos perder tudo e nada desejarmos ainda
por isso aproveito o pouco tempo que me sobeja da noite
este vácuo lento este visco dos espelhos
espessa escuridão agarrada à memória debaixo da pele
começa a asfixia o perigo de ter amado
no mais profundo segredo das noites devorávamo-nos
e um barco tremeluzia pelas cortina do quarto
como um presságio
nos objectos e a roupa atirada para cima das cadeiras
revelavam-me a pouco e pouco a desolação em que tenho vivido

Al Berto

2 comentários:

Anónimo disse...

Uma frase desse grande poeta que foi o Al Berto,que conheci pessoalmente"Todos os meus livros tiveram um carácter de urgência"disse Al Berto ao Jornal Expresso,faz quase 10 anos que desapareceu fisicamente,mas espiritualmente permanece vivo no coração dos portugueses,especialmente dos sineeenses.

Bem hajas Al Berto,onde estiveres...

Vendo optima escolha,mais uma vez parabéns.

Jinhus Zulu

Anónimo disse...

Olá vendo,
vim visitar o teu espaço e adorei o que li. Não conhecia, adorei e vou começar a lê-lo!
Tu realmente tens bom gosto e uma forma linda de postares as coisas com que parecem não significar nada, mas que são tão lindas.
Tudo de bom a amigo e
um beijo da
Maria